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Foto do escritorBernard Gontier

"A dama e o gangster" (La bonne anné)

Atualizado: 12 de fev. de 2022


Primeiro, as boas notícias. Não tem gangster nenhum, pode sossegar, é mais uma tradução beócia, só isso. Lino Ventura e Charles Gérard, dois poetas que vivem, supõe-se, de pequenos golpes, nada disso é dito e sim deduzível, gangasterismo seria, como dizer, ah, calculo que de imediato o vocábulo gangster produz uma imagem em sua mente.


A tradução literal do título - Feliz Ano Novo.


Outra boa notícia, está disponível no Youtube. Não sei em que termos. Tipo, falado em grego com legendas em coreano. Realmente não sei.


Por fim, a última boa notícia é que, durante a exibição, o espectador vai se beliscar e dizer: uau! Então cinema já foi feito dessa forma?!


Dirigido por Claude Lelouch, que se celebrizou mundialmente em 1966 com "Un homme et une femme", realizou trocentos filmes, subiu aos píncaros em 1981 com "Les Uns et les Autres" e, para encurtar, em 1973 nos deu essa preciosidade chamada La bonne année.


O filme abre com as cenas finais de "Un homme et une femme" e se você ao menos tangenciou essa era vai sentir um sorriso longínquo ao ouvir os acordes de "badabada dabadabada", composição de Francis Lai e Pierre Barouh.


Nesse ponto urge esclarecer um tópico: nós não estamos nos anos 70 falando de ícones do cinema mudo. Estamos em pleno ápice da MUDANÇA QUÂNTICA falando de um filme tão moderno que sai de 1973 e bem pode saltar para 2030. Está adiante do cinema de hoje, falando genericamente.


Françoise Fabian, a estrela feminina da película e par de Ventura perfaz das mais interessantes atrizes captadas que se pode aferir. Na época ela tinha 40 anos, aparentava ser muito mais moça, embora dotada de um quê de mulher que se reserva para poucas eleitas.

Fez uma penca de trabalhos.


Françoise e Ventura passeiam pela La Croisete, avenida cartão postal de Cannes, na trama 23 de dezembro de 1966, um longo e benfazejo diálogo filmado num único take, dado momento ela pára e em virtude de um deslize de seu interlocutor ela sorri, dizendo: então o senhor é um mentiroso? A caminhada continua, o diálogo idem, aquilo não tinha a menor importância.


No dia seguinte eles irão brincar de cama e mesa. Ela pergunta o que é uma mulher? Ele responde: é um homem que às vezes chora.


Chama a atenção a candura do filme como um todo, mesmo em se tratando de um assalto. A violência, marca registrada do cinema americano, embora saibamos bem não ser o único, aqui não possui eco algum.


Lino Ventura e Charles Gérard estão em Cannes para roubar a cobiçada joalheira Van Cleef & Arpels. Nada de pólvora. Ambos se fantasiam de decrépitos patrão e motorista e visitam a loja diversas vezes. Lino é o patrão. Ele conta para o gerente ter uma irmã enferma em Nice e gostaria de agradá-la com jóias, visto sua veneração pelos artefatos, mas que seria mais barato se ela gostasse de doces.


Lelouch não se interessa em mostrar seja ao espectador francês, seja ao europeu de modo geral, ou aos oriundos de outros continentes os encantos da cidade. Restam a fachada do hotel Carlton (mais um cartão postal de Cannes), o restaurante da sra. Félix e outras poucas locações.


Ventura e Gérard são conhecidos de longa data, dois tiozinhos de cabelos brancos, no Natal trocam presentes e beijos, assistem a Missa do Galo, fazem planos, dividem refeições e uma suite no Carlton.


Françoise é proprietária de um antiquário vizinho a joalheira. Ventura aparece disfarçado de decrépito, com chapéu e bengala, tem início um romance, por impreça que parível La bonne année é um filme de amor, e que amor, os dois almoçam, ela desfia a sua cultura, ele se diz fabricante de sorvetes em férias, para um desocupado envolvido em escambos o personagem de Lino beira o principesco, ela teve dois divórcios, discutem sobre uma mesa Luiz XVI e ele filosofa sobre a falta de autenticidade das coisas nos dias correntes, ninguém fala de uma escrivaninha Churchill ou de uma cadeira de balanço Kennedy.


O esquema do assalto para o brasileiro acostumado a ligar a TV e ver diariamente divisões blindadas, ou dir-se-ia regimentos, arrebentando pessoas e institutos, de tão inócuo soaria próximo a espetáculos tipo Show da Xuxa.


Nada demais, já se disse, dois tiozinhos grisalhos que uma vez laboriosamente fantasiados se transformam em quase nonagenários, visitam a Van Cleef & Arpels praticando uma encenação lenta, contínua, progressiva, até o desenlace final, então o roteiro apresenta duas eficiências apetitosas - A. O plano parece genial. B. O plano tem um furo do tamanho do Maracanã, mas este furo só aparece no timing exato, causando ao espectador a mesma surpresa que causa em

Lino Ventura. Não há o que fazer. É dali para as grades.


Gérard desaparece. As jóias nunca foram encontradas. Lino está assistindo, com os outros presidiários, "Un homme et une femme", 31 de dezembro de 1972. Ficou 7 anos em cana.


Lelouch coloca no script fragmentos de um sucesso seu para emoldurar a situação que se apresenta. Poucos cineastas fariam citação de si mesmos tão correta e bem posicionada. Ventura recebeu um falso indulto de réveillon para que a polícia, quem sabe, localize seu comparsa. Ele passeia pela noite parisiense, despista seus perseguidores, visita seu antigo lar e se depara com amarga surpresa. Daí prossegue, reencontra o velho camarada. Em frente a um bistrô com meia dúzia de gatos pingados eles se abraçam e logo depois Gérard - uma delícia assistir isso - lhe entrega a sua parte.


A idéia inicial era Orly com passagem para o Rio de Janeiro. Enquanto vê a vida diante de seus olhos na ante sala do embarque, o coração faz seu aviso. Liga para sua parceira um tanto virtual - passaram uma única noite juntos, no dia de Natal em 1966. Na noite seguinte ele foi preso.


As últimas cenas mostram Françoise arrumando a casa, é um cinema que não se faz mais, ela vai e volta com copos, pratos, as imagens voam, assinatura deste singular diretor, ela se debruça na janela vendo o dia raiar, a chuva fina, os táxis que passam na rua.


Ventura troca uma mala de dólares e uma estada indefinida na capital carioca pela continuação de um abraço interrompido 7 anos antes. Voltará para a cadeia.


Ele se senta na cozinha. Ela lhe serve um café.


Não tem créditos finais, apenas o letreiro: Paris, 1973.



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